Tertúlias de Colares: Revoluções de pensamento e de estar


Os cafés, anónimos, estão mergulhados em ruído. As unhas, a cor, o tamanho, o jogo de futebol do próximo fim-de-semana, o programa televisivo da moda, as maneiras de se conseguir mais dinheiro a enganar as pessoas, as roupas iguais, o cabelo a condizer, as normativas sociais, o falar alto para dizer que se viajou. É a realidade que se conhece e não existe vontade de ir mais além, o cansaço dança abraçado com a ignorância, uma linha de acção transversal que até contamina a área do conhecimento. Fica-se contente com pouco, maravilha para quem gosta de o vender. Noutros campos, em inúmeros lançamentos de livros, exposições, conferências e outros convívios mais dados às artes, à cultura ou ao meio académico, o umbigo é quem dança com o vazio. Não se quer transmitir nada às pessoas, não há mensagem alguma que se queira passar para fora. Sorrisos cínicos e achar que se é intelectual, artista, único e mais do que os outros, finge-se sensibilidade, bebe-se em surdina sem respeitar o motivo dos encontros e interessa é marcar presença para os outros, seus pares, verem. Há um vácuo enorme, uma falha de comunicação entre estes extremos que reduz as hipóteses de entendimento de um país e que faz com que muitas pessoas se sintam num limbo e que não pertencem a lugar algum.
A revolução, ou a ideia pessoal que tenho de certas revoluções, já que em Portugal se comemorou ontem o 25 de Abril, passará forçosamente por aqui, por uma outra maneira de comunicar, de partilha entre todos, de pensar.
Não seria a primeira vez que mencionaria neste blogue as tertúlias organizadas pelo professor Vítor Pena Viçoso como uma das raras excepções, actualmente, a muito do que comento acima e que nos fazem agarrar a vida com outros olhos. A revolução, ou a ideia pessoal que tenho de certas revoluções, já que em Portugal se comemorou ontem o 25 de Abril, passará forçosamente por aqui, por uma outra maneira de comunicar, de partilha entre todos, de pensar.

A premissa deste novo encontro era a apresentação, por Vasco Rosa, da reedição de Os Pescadores, de Raul Brandão (Relógio D´Água - Vol. XII, O.C., 2014), em que estiveram também presentes os responsáveis pela reedição e prefácio da obra, Luís Manuel Gaspar e Vítor Pena Viçoso. Para complementar, existia a exposição de Fotografia de Eduardo Valente E. Hilário, com 14 fotografias inspiradas pela obra de Raul Brandão, ria de Aveiro e vida dos pescadores.

Foram três horas, das 17:00 às 20:00, num espaço simpático e acolhedor que até então desconhecíamos, Sala da Folha, em Colares, que nos esmagaram da melhor maneira. Há todo um ambiente e forma de transmitir conhecimento nestas tertúlias que é impossível de descrever por palavras por muito que tente. O ponto de partida foi o livro, as peripécias e percurso até que esta nova edição se tornasse realidade, a investigação e notas que ajudam a compreender melhor o contexto e o que se está a ler, mas depressa nos vimos embrenhados numa incursão ao universo do escritor, à sua relação com a morte, com a política, ou à maneira de ver a espiritualidade de uma forma mais social, ou de como se pode sentir a sua influência em diversas frentes. A cabeça ameaça explodir de tanta informação e ideias que começamos a ter, ficamos com um brilho diferente, com outra luz, essa fonte de inspiração, referência e procura constante na obra do autor, a luz.

Escutámos como se pode observar a influência do escritor em vários movimentos, até no surrealismo português, da sua relação com Herberto Helder, que chegou a escrever o poema Húmus (1967) a partir do romance homónimo de Raul Brandão (1917), das ligações, pontos de encontro e possível influência que essa mesma obra teve no Livro do Desassossego, de Fernando pessoa, como se pôde observar em investigações no Brasil, da relação que se pode encontrar na pintura e na fotografia ou na maneira como em certos momentos a prosa do autor se funde com a poesia na forma como escreve e descreve, na forma como contempla de um modo quase fotográfico o que tem à frente.

Joseph Mallord William Turner - Fishermen at Sea

O génio, e aqui perdoem-me tal ousadia no uso desse termo, destas tertúlias está na forma informal, afável, natural, em como tudo flui, em como se comunica, na vontade genuína de dar algo às pessoas e isso faz com que exista o desejo de saber mais e de participar, sentimos que estamos a fazer parte de um acontecimento importante, real, nosso. Está na candura e experiência de vida dos intervenientes e do público, já habitual e que partilham entre si este maravilhoso segredo que está à vista de todos. Foram três horas, saliente-se uma vez mais, que passaram sem darmos por isso, em pleno Domingo, afastados da confusão e da azáfama da cidade. Uma verdadeira revolução, interior, de pensamento, de estar.